Romper o tabu da heterossexualidade: contribuições da lesbianidade como movimento social e teoria política

LUA
27 min readMay 13, 2021

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por Jules Falquet (2009) | PDF aqui

Título original do artigo: Rompre le tabou de l’hétérosexualité, en finir avec la différence des sexes: les apports du lesbianisme comme mouvement social et théorie politique.

Tradução: Renato Aguiar

Jules Falquet

“Os movimentos gays mistos des-locamᶦ a questão da heterossexualidade ao centrarem-se na sexualidade; uma parte dos movimentos feministas e lésbicos não mistos põem o sistema da heterossexualidade obrigatória e a organização da reprodução no âmago da opressão das mulheres, o que é mais ameaçador”. (Mathieu, 1999)¹

Devemos nos alegrar com a atual multiplicação dos movimentos e das pesquisas sobre a/s sexualidade/s, cujo um dos méritos, e não o menos importante, é tornar cada dia mais visíveis todos os tipos de práticas e de pessoas que, no mundo inteiro, corajosamente contestam a ordem sexual existente. Contudo, ao se concentrarem quase exclusivamente sobre a sexua- lidade como um conjunto de práticas sexuais e/ou desejantes individuais, e ao atribuírem uma importância considerável à intervenção sobre o corpo e sua aparência — aqui mais uma vez, uma intervenção principalmente individual — parece-me que a corrente dominante nestes movimentos perde de vista uma parte do seu objetivo. Com efeito, se a questão é contestar o caráter binário dos gêneros ou dos sexos e sobretudo a sua suposta naturalidade — projeto ao qual amplos segmentos dos movimentos feministas e lésbicos se dedicam há cerca de trinta anos — a focalização sobre a identidade pessoal e as práticas cotidianas nos expõe ao risco de sermos arrastadas a uma rua sem saída. Uma rua certamente fascinante, como podem ser o corpo e a psique humana, mas que não nos permitirá um distanciamento suficiente para atingirmos as raízes do problema. Com efeito, a tese que eu gostaria de defender aqui é que o problema não está nem no corpo, nem nas pessoas… Então, onde está ele e como resolvê-lo?

Para responder a esta questão, proponho aqui um encontro, ou reencontros, com outras pistas de análise e de lutas, cujas premissas foram formuladas desde a segunda metade dos anos 1970, mas que hoje são pouco conhecidas e pouco utilizadas. As possíveis razões desta ignorância involuntária ou deliberada são múltiplas. Em primeiro lugar, a desigualdade na difusão das diferentes perspectivas segundo seu potencial subversivo e as posições de poder (de sexo,² classe e “raça”³ especialmente) das pessoas e dos grupos que as expõem, no meio acadêmico e a partir do mundo militante, bem como no quadro das relações Norte-Sul.⁴ Em seguida, o enfraquecimento dos movimentos sociais dos quais elas derivaram, e que poderiam nutri-las, ligado ao refluxo dos movimentos “progressistas” ou “revolucionários” e à ascensão do conservadorismo desde os anos 1980, no quadro do desenvolvimento da mundialização neoliberal.

Contudo, não se trata tanto aqui de se interrogar sobre as razões pelas quais tal ou qual orientação hoje domina nas ciências sociais ou nos movimentos sociais, mas antes de confrontar a urgência intelectual e humana de compreender e transformar a realidade. Com efeito, a imposição do neoliberalismo conduz a um aprofundamento vertiginoso das desigualdades segundo as linhas de fratura de sexo, de “raça” e de classe. Face a este aumento brutal da miséria e da exploração, ignorar a herança das lutas radicais é um luxo que nós não podemos nos permitir.

Em um primeiro momento, visando relativizar a atualmente dominante concepção ocidental de sexualidade e de suas relações com o sexo, o gênero e os mecanismos de aliança, farei aqui algumas evocações socio-antropológicas,ᶦᶦ assim como uma breve apresentação dos principais resultados do trabalho fundamental que Nicole-Claude Mathieu desenvolveu ao longo dos anos 1970 e 1980, e reuniu em 1991 em uma obra com título eloquente: L’Anatomie politique [A anatomia política]. Apresentarei em seguida o que me parece constituir as mais importantes contribuições teóricas e políticas do movimento lésbico, radical e feminista⁵ deste período nos Estados Unidos e na França.⁶ Para terminar, mostrarei a que ponto essas contribuições são particularmente preciosas no contexto neoliberal atual e como pode-se, ainda, enriquecê-las para fazer face aos desafios analíticos e políticos que a mundialização nos coloca.

Variedade das práticas sexuais e matrimoniais entre “mulheres” e da significação que lhes é atribuída

Historicidade e multiplicidade das práticas sexuais e maritais entre mulheres

O mundo ocidental atual, urbano, “branco” e economicamente privilegiado, está longe de ser o primeiro ou o único no qual as “mulheres” estabelecem relações sexuais, amorosas e/ou maritais entre si. Diferentes poetisas testemunharam em primeira pessoa o seu amor carnal por outras “mulheres”, desde Safo da antiga Lesbos até a afro-norte-americana Audre Lorde (Lorde, 1998 [1982]; 2003 [1984]). A despeito de destruições posteriores, a Índia pré-védica deixou esculturas muito explícitas de relações sexuais entre “mulheres” (Thadani, 1996). No Zimbábue, a ativista lésbica Tsitsi Tiripano (falecida no ano 2001) e o grupo lésbico e gay GALZ, no seio do qual ela militava, são uma prova viva de que a lesbianidade existe no continente africano (Aarmo, 1999). Em Sumatra, na Indonésia, os “tomboys” são as “mulheres masculinizadas” que estabelecem relações de casal com outras “mulheres” (Blackwood, 1999).

Tal como hoje é definido no pensamento ocidental dominante, a lesbianidade é uma categoria recente. Ela implica numerosos postulados eminentemente sociais, os quais foram progressivamente instalados em diferentes sociedades. Alguns deles são amplamente partilhados para além do mundo ocidental — a crença na existência de mulheres e de homens, e em que estas mulheres e estes homens são como tal em função de um “sexo” que lhes seria conferido pela Natureza. Outros são mais específicos: conferir às pessoas uma identidade sexual com base em práticas sexuais, decretar que esta identidade é estável e permanente (até mesmo inata), enfim, fazer coincidir esta “identidade” com um tipo de caráter ou de personalidade.

Em contrapartida, práticas que poderiam parecer lésbicas nas lógicas ocidentais atuais, sejam práticas sexuais ou matrimoniais, não o são necessariamente pelas sociedades que as põem em prática. Assim, pelo menos em cerca de trinta sociedades, como os nandis do Quênia ocidental, existem formas de casamento entre “mulheres” sem que estas tenham necessaria- mente práticas sexuais entre si (Amadiume, 1987; Oboler, 1980). Geralmente, trata-se, para uma mulher rica e idosa, de ter uma descendência com uma mulher mais jovem que lhe fornecerá seus filhos tendo relações sexuais com um homem. Igualmente, nas populações indígenas nas planícies do norte do continente americano, as/os xamãs chamadas/os “berdaches” estabelecem casais com pessoas do mesmo “sexo”, precisamente porque elas e eles são socialmente considerados(as) como pertencentes ao gênero oposto ao seu próprio “sexo” (Lang, 1999). É precisamente esta grande diversidade e complexidade dos arranjos culturais presentes e passados, minoritários e majoritários em torno do sexo, do gênero e da sexualidade, que o trabalho de Nicole-Claude Mathieu põe em evidência (1991).

O quadro de análise de Mathieu

O quadro de análise proposto por Nicole-Claude Mathieu é especialmente interessante, pois engloba ao mesmo tempo sociedades não ocidentais e ocidentais, atuais e passadas, às quais ela aplica o seu duplo olhar sociológico e antropológico. O cerne de seu pensamento sobre a articulação entre sexo, gênero e sexualidade aparece em seu artigo “Identité sexuelle/sexuée/de sexe? Trois modes de conceptualisation de la relation entre sexe et genre [Identidade sexual/sexuada/de sexo? Três modos de conceitualização da relação entre sexo e gênero]”.⁷ Ela responde a uma hipótese de Saladin d’Anglure (1985) segundo a qual a existência de um “terceiro sexo”, como na sociedade Inuit, invalidaria a idéia da binaridade dos gêneros e dos sexos. E atenuaria importantemente sobretudo, segundo Mathieu, a teoria da opressão das “mulheres”. Em seu desenvolvimento, Mathieu trabalha sobre um conjunto de práticas concernentes à sexualidade, ao gênero ou ao sexo que o pensamento ocidental atual qualificaria de bom grado de queer. Mais precisamente, ela analisa:

“– [as] ‘desviâncias institucionalizadas’, de modo permanente ou ocasional, investigando se elas são uma inflexão da norma ou, ao contrário, a sua quintessência;

– a autodefinição de grupos ou de indivíduos considerados como desviantes ou marginais, indagando se ela constitui uma solução ‘normatizada’ às inadequações ou uma subversão” (Mathieu,1991, p. 130).

Estudando estas “desviâncias” em sociedades as mais variadas, Mathieu mostra (1) que a maior parte delas constitui na realidade mecanismos institucionalizados de ajustamento e/ou são funcionais no sistema social considerado, e, sobretudo, (2) que não existe uma única maneira de acreditar (ou não) na naturalidade do sexo e dos gêneros. O artigo de Mathieu é particularmente interessante porque mostra bem os limites da “vulgata sexo-gênero” que, a partir dos anos 1980, tende a substituir as análises propriamente feministas: ela é inofensiva e rasa se dela retirarmos a dimensão da sexualidade. Sobretudo, porém, como demonstra Mathieu, não são as sexualidades nem os gêneros queer que dão verdadeiramente a chave para a compreensão das relações sociais de sexo, mas de fato a norma que eles revelam, isto é, o princípio reitor da heterossexualidade que assombra como um espectro as “teorias de gênero”.

(…) os limites da “vulgata sexo-gênero” que, a partir dos anos 1980, tende a substituir as análises propriamente feministas

É ao desmascarar este fantasma sob suas diversas manifestações que Mathieu consegue fazer aparecer não um, mas três grandes modos de articulação do sexo, do gênero e da sexualidade:

“Modo I: Identidade ‘sexual’ baseada em uma consciência individualista do sexo. Correspondência homológica entre sexo e gênero: o gênero traduz o sexo.

Modo II: Identidade ‘sexuada’ baseada em uma consciência de grupo. Correspondência analógica entre sexo e gênero: o gênero simboliza o sexo (e inversamente).

Modo III: Identidade ‘de sexo’ baseada em uma consciência de classe. Correspondência socio-lógicaᶦᶦᶦ entre sexo e gênero: o gênero constrói o sexo (Mathieu, 1991, 231).”

Esta tipologia permite tomar um distanciamento real do etnocentrismo e ao universalismo mal compreendidos que caracterizam o olhar ocidental contemporâneo dominante sobre a sexualidade e, sobretudo, sobre as crenças concernentes às identidades de sexo. Este descentramento revela o caráter eminentemente relativo, histórico, cultural, não absoluto em suma, do sexo, do gênero e da sexualidade. No mesmo movimento, Mathieu mostra claramente que grande parte das pessoas heterossexuais, como daquelas que contestam a heterossexualidade no mundo ocidental, mas também, diria eu, grandes segmentos dos movimentos gays, queer e trans globalizados que se desenvolvem hoje, na verdade aderem ao modo I e às vezes ao modo II de articulação sexo-gênero-sexualidade.

(…) revela o caráter eminentemente relativo, histórico, cultural, não absoluto em suma, do sexo, do gênero e da sexualidade.

Proponho aqui, ao contrário, retomarmos as lógicas desenvolvidas por outras correntes, as quais há muito se inscrevem, como o pensamento da própria Mathieu, nisto que ela qualifica como o modo III, antinaturalista e materialista.⁸ Não obstante, antes de prosseguir, ainda é necessário dar algumas precisões importantes sobre o contexto material e conceitual no qual situam-se estas análises.

Os três modos de conceitualização das relações entre sexo, gênero e sexualidade descritos por Mathieu se inscrevem no quadro de uma predominância (numérica e política) das sociedades organizadas em favor das pessoas consideradas como homens e como masculinos. Esta hegemonia, que observamos quase em toda parte no mundo nos períodos históricos documentados, funciona graças a uma estreita combinação entre (1) relações sociais de sexo variadas mas patriarcais⁹ e (2), para as “mulheres”, a imposição geral da heterossexualidade procriativa e sobretudo a interdição estrita e a inviabilização da homossexualidade feminina exclusiva.

Com certeza, existem exceções. Como nos mostra um conjunto de trabalhos recentes reunidos por Mathieu (2007), certas sociedades matrilineares e sobretudo uxorilocais¹⁰ conhecem relações sociais de sexo nitidamente menos desigualitárias que aquelas existentes em sistemas patrilineares ou virilocais. Quanto à sexualidade, não é raro que a homossexualidade masculina (certas práticas sexuais, em certos períodos da vida) e sobretudo a homossocialidade sejam socialmente integradas aos dispositivos de poder patriarcais, como entre os gregos antigos, os azandes, os baruyas e em certos clubes exclusivamente masculinos de numerosas metrópoles atuais, como muito bem lembra Mathieu (1991). Por outro lado, as práticas sexuais entre “mulheres” só são em geral toleradas quando são estritamente privadas, invisíveis e claramente separadas de práticas homossociais e/ou de solidariedade moral e material, e mesmo de alianças matrimoniais e políticas visíveis¹¹ entre “mulheres”. Ora, foi precisamente a partir da conjunção deliberada coletiva entre práticas sexuais, amorosas e alianças materiais entre “mulheres” em detrimento das relações obrigatórias com os “homens”, quer dizer, a partir da lesbianidade como movimento político, que puderam ter lugar as verdadeiras revoluções do pensamento que eu apresento aqui.

A lesbianidade como movimento social e sua teorização política

Surgimento de um movimento social autônomo e crítico dos outros movimentos

A existência semipública de coletividades lésbicas em diferentes países ocidentais (notadamente) é muito anterior ao desenvolvimento do movimento feminista, como testemunha, por exemplo, o estudo de Davies e Kennedy (1989) sobre a pequena cidade de Buffalo, nos Estados Unidos macarthistas dos anos 1950, que mostra a existência de comunidades de lésbicas proletárias e/ou racializadas organizadas, entre outros, em torno do código “butch-fem”.¹² Não obstante, é sobretudo a partir dos anos 1960 e no começo dos anos 1970, que o movimento lésbico surge, no Norte como no Sul, em um clima de prosperidade econômica e de mudanças sociais e políticas profundas: desenvolvimento da sociedade de consumo, “modernidade” triunfante e emergência de diversos movimentos progressistas e/ou revolucionários. Nos Estados Unidos, os movimentos pelos direitos civis, a libertação negra, a independência de Porto Rico ou os direitos indígenas, as lutas revolucionárias e de descolonização, a oposição à guerra do Vietnã, os movimentos feminista e homossexual, enfim, constituem “escolas” políticas para toda uma geração de militantes. Entretanto, por diversas razões, estes movimentos deixam numerosas mulheres e lésbicas insatisfeitas. É precisamente a crítica das insuficiências, das contradições e dos esquecimentos destes movimentos que as leva a tomar uma posição de autonomia organizacional e sobretudo teórica.

No que diz respeito às lésbicas, a primeira expressão amplamente visível desta necessidade de autonomia é o fato de a norte-americana branca Jill Johnston, que repercute as críticas ao mesmo tempo ao movimento gay dominado por homens e ao movimento feminista dominado por mulheres heterossexistas e frequentemente heterossexuais. Suas colunas de humor, geralmente bastante ácidas, publicadas no Village Voice entre 1969 e 1972, foram reunidas em um livro intitulado (por seu editor) Lesbian Nation: the Feminist Solution [Nação lésbica: a solução feminista]. Publicado em 1973 nos circuitos editoriais clássicos, ele se tornou rapidamente um bestseller (Johnston, 1973). Na verdade, nos anos 1970, e não sem conflitos, o movimento lésbico surge e se espalha por toda parte do mundo, assumindo sua autonomia ao mesmo tempo em relação ao feminismo e ao movimento homossexual misto, e mais amplamente em relação às organizações “progressistas” das quais frequentemente suas militantes saíram.¹³

Assim, o primeiro tipo de contribuição do movimento lésbico para os outros movimentos sociais não é outro senão lhes permitir se interrogar sobre seus limites e sobre o que não foi pensado tanto nas suas práticas cotidianas quanto nos seus objetivos políticos, muito particularmente no domínio da sexualidade, da família, da divisão sexual do trabalho ou da definição dos papéis masculinos e femininos. As inumeráveis críticas formuladas sobre o assunto pelas lésbicas, dentre as quais a maior parte também foi articulada pelo movimento feminista, são um espelho estendido aos diferentes movi- mentos e militantes que poderia lhes permitir dar realmente a seus projetos toda a amplitude política que eles ostentam.

(…) contribuição do movimento lésbico para os outros movimentos sociais não é outro senão lhes permitir se interrogar sobre seus limites (…)

Teorização da imbricação das relações de poder e da necessidade das alianças

Neste mesmo ímpeto de tomada de autonomia e de aprofundamento da reflexão sobre os objetivos a longo prazo e sobre a cotidianidade dos movimentos sociais, surge em 1974 em Boston o Combahee River Collective [Coletivo Combahee River], um dos grupos feministas negros pioneiros. Ele nasce de uma crítica quádrupla: ao sexismo e à dimensão pequeno-burguesa do movimento negro, ao racismo e às perspectivas pequeno-burguesas do movimento feminista e lésbico, ao caráter reformista da National Black Feminist Organization [Organização Feminista Negra Nacional], e à cegueira das feministas socialistas face às questões de “raça”. Em resposta a todas essas insuficiências, o Combahee River Collective afirma pela primeira vez, em um manifesto que tornou-se clássico, a inseparabilidade das opressões e, portanto, das lutas contra o racismo, o patriarcado, o capitalismo e a heterossexualidade:

“A definição mais geral de nossa política atual pode se resumir nos seguinte: nós estamos ativamente engajadas na luta contra a opressão racista, sexual, heterossexual e de classe, e nos damos como tarefa o desenvolvimento de uma análise e de uma prática integradas, baseadas no fato de que os principais sistemas de opressão são imbricados [interlocking]. A síntese dessas opressões cria as condições nas quais nós vivemos. Na condição de mulheres negras, nós vemos o feminismo negro como o movimento político lógico para combater as opressões múltiplas e simultâneas que afrontam o conjunto das mulheres de cor” (Combahee River Collective, 2007 [1979]).

Numerosas lésbicas e feministas “de cor” o repercutiram rapidamente. Entre as iniciativas mais marcantes, a coletânea This Bridge Called my Back [Esta ponte chamada minhas costas], coordenada por duas lésbicas chicanas, Gloria Anzaldúa e Cherrie Moraga, agrupa as vozes de um conjunto de feministas e de lésbicas negras, indígenas, asiáticas, latinas, migrantes e refugiadas, que afirmam, elas também, que lhes é impossível escolher entre sua identidade como mulher e sua identidade como pessoa “de cor” (Moraga, Anzaldúa, 1981).

Do ponto de vista teórico, as perspectivas abertas por essas militantes marcam uma verdadeira mudança de paradigma, com a formulação pioneira do Combahee River Collective do conceito de imbricação [interlocking] de quatro relações de opressão (Combahee River Collective, ibid.). Observemos que esta contribuição fundamental para as ciências sociais é indissociável de seu ponto de vista de outsiders within [excluídas em seu próprio mundo], como mulheres, negras, lésbicas e proletárias. Sua capacidade de ver e de enunciar esta imbricação é igualmente fruto de sua experiência coletiva de militância. Trata-se aqui de uma contribuição suplementar: o Combahee nos lembra que, se tomarmos seriamente a teoria do standpoint [ponto de vista],¹⁴ convém levar em consideração pelo menos três elementos na recepção que podemos ter de uma teoria: não somente a posição social ocupada pela ou pelas pessoas que a formula(m), mas também o caráter mais ou menos coletivo do pensamento e seu tipo de inserção nos projetos de transformação social.

No plano político, as contribuições de um grupo como o Combahee são igualmente consideráveis. Em primeiro lugar, suas militantes afirmam a inelutabilidade da luta simultânea em várias frentes. Em seguida, elas insistem na necessidade de que todos assumam a responsabilidade das diversas lutas. Combater o racismo, por exemplo, é responsabilidade das pessoas brancas como das outras, e incumbe tanto aos homens quanto às mulheres oporem-se às relações sociais de sexo patriarcais. Contudo, e aqui há um outro ponto central, elas sublinham que a organização dessas lutas deveria respeitar certas regras. O objetivo não é que cada grupo se feche e se isole em combates específicos, como explica Barbara Smith, uma das militantes chave do Combahee:

“Eu critiquei frequentemente as armadilhas do separatismo lésbico praticado sobretudo pelas mulheres brancas. […] Em vez de trabalhar no desafio ao sistema e na sua transformação, muitas das separatistas lavam as mãos e o sistema segue tranquilamente o seu caminho. […] A autonomia e o separatismo são fundamentalmente diferentes” (Smith, 1983).

A distinção proposta por Smith entre separatismo e autonomia é particularmente útil. Com efeito, como o separatismo, a autonomia implica a livre escolha por cada grupo dos critérios de inclusão de militantes e das maneiras de trabalhar. Em contrapartida, à diferença do separatismo, a autonomia permite, e ela deve desembocar na criação de espaços de encontro e de aliança:

“As mulheres negras podem escolher legitimamente não trabalhar com as mulheres brancas. O que não é legítimo é ostracisar as mulheres negras que não tenham feito a mesma escolha. O pior problema do separatismo não é quem nós definimos como ‘inimigo’, mas o fato de ele nos isolar uma das outras” (Smith, 1983).

Enfim — e trata-se de uma consequência lógica e particularmente importante de tudo o que foi dito até aqui — face à simultaneidade das opressões e no quadro da autonomia política, a estratégia que estas lésbicas-feministas negras defendem é a busca ativa e a construção de coalizões, não sobre a base de uma adição de identidades e de organização fragmentadas ao infinito, mas a partir de ações concretas e em vista de formular coletivamente um projeto político (Smith, 1983).

Desnaturalização da heterossexualidade e do sexo

A terceira grande contribuição das lésbicas é a inversão completa da perspectiva naturalista do senso comum sobre a sexualidade, os gêneros e sobretudo os sexos. Esta inversão é levada a cabo pelo reexame e questionamento da ideia, aparentemente simples e inocente, de que a heterossexualidade seria um mecanismo natural de atração entre dois sexos.

O primeiro ataque contra a suposta naturalidade da heterossexualidade, dos gêneros e dos sexos é realizado desde 1975 pela antropóloga branca Gayle Rubin em seu ensaio “The Traffic in Women. Note on the ‘Political Economy’ of Sex [Tráfico de mulheres. Notas sobre a ‘economia política’ do sexo]” (Rubin, 1999 [1975]). Neste trabalho audacioso, Rubin mostra o caráter profundamente social da heterossexualidade. Ela sublinha que o próprio Claude Lévi-Strauss esteve perigosamente perto de dizer que a heterossexualidade era um processo socialmente instituído, ao afirmar que era a divisão social do trabalho, socialmente construída, que obrigava a formação de unidades “familiares” abrangendo ao menos uma mulher e um homem. Mais precisamente, o que o antropólogo constata é que, em vista da reprodução biológica e social, é necessário compelir os indivíduos a formarem unidades sociais abrangendo ao menos uma “fêmea” e um “macho” – unidades sociais que os indivíduos não formam espontaneamente. Na esteira de Lévi-Strauss, Rubin demonstra que o papel da divisão sexual do trabalho, compreendida nesta perspectiva como uma interdição, pesando para cada sexo, de dominar o conjunto das tarefas necessárias para a sua sobrevivência, é o que o(s) torna material e simbolicamente dependente(s) um(a) do(a) outro(a). Ela é, também e sobretudo, explica Rubin, a razão de ser do tabu da similitude entre homens e entre mulheres, intimamente ligado ao tabu da homossexualidade – anterior ao tabu do incesto e mais fundamental do que este último (Rubin, 1999 [1975]).¹⁵

(…) em vista da reprodução biológica e social, é necessário compelir os indivíduos a formarem unidades sociais abrangendo ao menos uma “fêmea” e um “macho”.

Alguns anos mais tarde, ao situarem, enfim, a lesbianidade no âmago do raciocínio, duas outras escritoras e militantes feministas brancas, Monique Wittig e Adrienne Rich, lograram estender o alcance da análise. Com frequência se opõem estas duas teóricas,¹⁶ não obstante, todas as duas procedem a um reposicionamento particularmente heurístico da lesbianidade, mediante uma tripla operação. Em primeiro lugar, elas retiram a lesbianidade do campo estreito das práticas estritamente sexuais. Em seguida, elas redirecionam a atenção dada a esta prática “minoritária” para as práticas “majoritárias”, isto é, apontam o projetor para a heterossexualidade. Enfim e sobretudo, elas mostram até onde o que está em jogo tanto quanto à lesbianidade como quanto à heterossexualidade não se encontram tanto no campo da sexualidade quanto naquele do poder. Para ambas, a heterosse- xualidade, longe de ser uma inclinação sexual natural nos seres humanos, é imposta às mulheres pela força, quer dizer, ao mesmo tempo pela violência física e material, inclusive econômica, e por um sólido controle ideológico, simbólico e político, o qual faz intervir um conjunto de dispositivos que vão desde a pornografia até a psicanálise.

Assim, em seu artigo “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence [Heterossexualidade compulsória e existência lésbica]”¹⁷, Rich denuncia a heterossexualidade obrigatória como uma norma social tornada possível pela invisibilização da lesbianidade — inclusive no movimento feminista. Ela situa a lesbianidade na perspectiva de um “continuum lésbico” unindo todas as mulheres que, de diferentes maneiras, se distanciam da heterossexualidade obrigatória e tentam desenvolver laços entre elas para lutar contra a opressão das mulheres, independentemente de sua sexualidade. Rich criticou certos aspectos essencialistas do conceito de “mulher identificada com mulheres” (Koedt, 1970). Em seu artigo, ela sublinha, em contrapartida, a existência de práticas de solidariedade entre mulheres descritas entre e por mulheres negras, como Toni Morrison ou Zora Neale Hurston. E trata-se, de certo modo, do que ela deseja ver desenvolver-se: uma verdadeira solidariedade entre as mulheres, não “natural”, romântica ou ingênua, mas de fato voluntária e claramente política, que dê lugar a todas na luta pela libertação comum. Em um trabalho posterior, ela afirma:

“É fundamental que nós compreendamos o feminismo lésbico em seu sentido mais profundo e radical, como o amor por nós mesmas e por outras mulheres, o engajamento em prol da liberdade de todas e cada uma de nós, que transcende a categoria de “preferência sexual” e aquela dos direitos civis por transformar-se em uma política de questões de mulheres que lutam por um mundo em que a integridade de todas — e não de um punhado de eleitas — seja reconhecida e levada em consideração em todos os domínios da cultura” (Rich, 1979).

Monique Wittig, por seu lado, parte imediatamente de uma das principais proposições do feminismo materialista– que se desenvolvia então em torno da revista Questions féministes [Questões feministas], na qual seus dois artigos fundadores foram publicados¹⁸ – segundo a qual as mulheres e os homens não se definem por seu “sexo”. Para esta corrente, longe de toda referência naturalista ao corpo, as mulheres e os homens são definidos por uma relação de classe, por uma posição no seio das relações sociais de poder que eles/elas mantêm, e que Colette Guillaumin definiu como relações de apropriação física direta, que ela chamou de relações de sexagem, com sua face mental: a naturalização das dominadas (Guillaumin, 1978). Segundo os termos de Wittig, “o que faz uma mulher é a relação social particular com um homem, relação que no passado nós chamamos de servidão, relação que implica obrigações pessoais e físicas, assim como obrigações econômicas (“confinamento doméstico”, corvéia doméstica, dever conjugal, produção ilimitada de filhos, etc.)” (Wittig, 2001 [1980]). As mulheres e os homens são categorias políticas que não podem existir uma sem a outra. As lésbicas, ao “escaparem ou se recusarem a se tornar ou permanecerem heterossexuais”, ao colocarem em causa esta relação social, a heterossexualidade, questionam a própria existência das mulheres e dos homens. Mas não basta fugir individualmente, pois não existe verdadeiramente o lado de fora: para existir, as lésbicas devem travar uma luta política de vida ou morte em prol do desaparecimento das mulheres como classe, para destruir o “mito da Mulher” e para abolir a heterossexualidade:

“Nossa sobrevivência exige contribuir com todas as nossas forças para a destruição da classe – as mulheres – no interior da qual os homens aprisionam as mulheres, o que só pode ser realizado pela destruição da heterossexualidade como sistema social baseado na opressão e na apropriação das mulheres pelos homens, o qual produz o corpo de doutrinas sobre a diferença entre os sexos¹⁹ para justificar esta opressão” (Wittig, 2001 [1980]).

(…) longe de toda referência naturalista ao corpo, as mulheres e os homens são definidos por uma relação de classe, por uma posição no seio das relações sociais de poder que eles/elas mantêm (…)

O que Wittig mostra é que a heterossexualidade (1) não é natural, mas social, (2) não é uma prática sexual, mas uma ideologia, que ela chama de “o pensamento straight [hétero]”, e, sobretudo, (3) que esta ideologia que é a base da opressão patriarcal das mulheres, de sua apropriação pelos homens, é fundamentada na crença fervorosa e incessantemente renovada na existência de uma diferença dos sexos. Wittig sublinha que esta “diferença dos sexos” constitui um postulado subjacente não só ao senso comum, mas ao conjunto das “ciências” ocidentais, da psicanálise até a antropologia. Ora, ela afirma que não só esta crença, verdadeira pedra angular da heterossexualidade, nunca é submetida à análise, mas ela é desmentida, dia após dia, pela existência política das lésbicas e de seu movimento.

(…) a heterossexualidade (1) não é natural, mas social, (2) não é uma prática sexual, mas uma ideologia (…)

Os desafios atuais

Hoje, que balanço podemos fazer das teorizações que acabo de apresentar aqui e que constituem o alicerce de um pensamento feminista e/ou lésbico materialista, antinaturalista e radical? Como nos permitem elas atacar as raízes dos problemas “de fundo” que evoquei no começo deste artigo? Aliás, estes problemas, qual são eles finalmente?

O primeiro, como repetem com insistência as militantes lésbicas e feministas negras, entre outras, é a imbricação das relações sociais de poder. Este elemento fundamental questiona profundamente as orientações de toda uma parcela dominante do movimento LGBTQI,²⁰ que se prende a um só tipo de relações sociais (de sexo), ao mesmo tempo se baseando — e reforçando-as — nas perspectivas “gay-masculinas-patriarcais” brancas e de classe média. Com certeza, em nenhuma hipótese se trata aqui de contestar em absoluto a legitimidade das lutas de todas as sexualidades e gêneros “minoritários”, mas de exortar à vigilância para, de alguma maneira, não perder do lado da “raça” e da classe o que eventualmente pode-se ganhar do lado das relações de sexo. Simultaneamente, a consciência da imbricação das relações de poder obriga a levar mais longe as perspectivas de Wittig, Rich ou Mathieu. Em particular, nós devemos perseverar na análise da maneira como a heterossexualidade como ideologia e como instituição social constrói e naturaliza não somente a diferença dos sexos, mas também a diferença de “raça” e de classe. Trata-se de um campo particularmente vasto e apaixonante, no qual a maior parte das análises restam por fazer.

Hoje é ainda mais vital decifrar este campo, já que o nacionalismo, a xenofobia e o essencialismo (de “raça” e de sexo) retornam em pleno vigor com a globalização e o desenvolvimento de um pensamento político reacionário, naturalista e ahistórico, ligado à ascensão do fundamentalismo religioso, nos Estados Unidos e no mundo, pensamento este moral e financeiramente encorajado pelos sucessivos governos norte-americanos e/ou exacerbado por sua política. Os trabalhos de Colette Guillaumin sobre a naturalização da “raça” e do sexo, que são uma das principais fontes da corrente materialista feminista e lésbica, constituem uma base extremamente sólida sobre a qual se apoiar. Contudo, não nos enganemos sobre o “inimigo principal”: o que está na base deste processo ideológico (naturalização das posições sociais dos indivíduos, progressão rápida do religioso como expressão máxima do político) é certamente um processo material de exploração, de extração e de concentração de riquezas, que se intensifica na globalização neoliberal.

Precisamente, uma terceira série de desafios (o cerne do “problema”, talvez) diz respeito ao endurecimento das relações de poder e à deterioração das condições de vida de uma parcela muito grande da população mundial. O empobrecimento brutal da maioria das “mulheres” (e dos homens) no mundo impõe mobilidade a muitas pessoas, justo em um momento em que as políticas migratórias internacionais se tornam mais rígidas e que o controle de seus deslocamentos internos se reforça em muitos países (por meio de minorização jurídica, instalação em campos de refugiados, encarceramento penitenciário, muros erguidos em toda parte, guetização de numerosos bairros populares, mas também a ameaça do assassinato-femicida ao “modelo” de Ciudad Juárez, o reforço das separações “étnicas”, a falta de meios financeiros para se deslocar etc.). O trabalho se modifica e se informaliza, ao passo que uma parcela cada vez maior da mão de obra é empurrada para o que chamei alhures de “continuum do trabalho considerado feminino”, nem inteiramente gratuito, nem verdadeiramente assalariado, e que une o conjunto dos “serviços” esperados e extraídos a custos menores de pessoas socialmente construídas como mulheres (Falquet, 2008).

O empobrecimento brutal da maioria das “mulheres” (e dos homens) no mundo impõe mobilidade a muitas pessoas, justo em um momento em que as políticas migratórias internacionais se tornam mais rígidas e que o controle de seus deslocamentos internos se reforça em muitos países

Quanto a isto, o trabalho de Paola Tabet, diretamente na linha das análises aqui apresentadas, poderia mostrar-se útil, muito particularmente o seu conceito de intercâmbio econômico-sexual (2004). Com efeito, permitiria compreender melhor as novas lógicas de alianças matrimoniais, sexuais e de trabalho (e, portanto, uma parte importante das práticas sexuais e de gênero) das mulheres empobrecidas e racializadas, cujas “escolhas” possíveis, devido à sua frequente carência de autonomia jurídica, oscilam cada vez mais entre casamento com homens mais brancos e mais ricos, eventualmente de outras nacionalidades, e o trabalho sexual sob todas as suas formas antigas e novas. Simultaneamente, seria necessário usar plenamente a intervenção das perspectivas de coformação das relações sociais a fim de analisar o modo como este intercâmbio econômico-sexual se organiza e como ele se combina com o trabalho “clássico” assalariado. Por exemplo, para compreender as intervenções sobre o corpo: criar ou melhorar os seios ou clarear a tez permite encontrar um marido, um cliente ou um emprego de recepcionista, ou ainda tornar-se ou permanecer uma “mulher” “branca/bela”?

É sabido, os problemas são numerosos e complexos. Para nos guiar, nós dispomos entretanto de ferramentas — que restam a aperfeiçoar: as teorias da imbricação das relações sociais de sexo, de “raça”, de classe e a análise do “pensamento straight [hétero]”. Estas teorias incitam a distanciar-se de uma política “identitária” que se hipnotiza em torno da defesa ou da contestação dos atributos simbólicos, corporais e psíquicos de um sexo, de uma “raça” ou de uma classe. As lésbicas feministas mostraram bem: a Natureza não existe e seus atributos não passam de marcadores e consequências da atribuição de um lugar particular na organização social do trabalho. Eles podem mudar sem que a organização do trabalho seja por isto perturbada. Além disso, enquanto o combate se der em uma só dimensão por sua vez, a imbricação das relações sociais permitirá sua reacomodação sem que a lógica de fundo seja modificada — quer dizer, a opressão e a exploração. É à opressão e à exploração que nós devemos nos concentrar se quisermos combater eficazmente os seus efeitos. Em outros termos, nós devemos lutar para modificar a organização da divisão do trabalho, do acesso aos recursos e aos conhecimentos. E para começar, nós podemos nos reapropriar das análises dos movimentos sociais que se propuseram atacar diretamente o coração das relações de poder.

(…) distanciar-se de uma política “identitária” que se hipnotiza em torno da defesa ou da contestação dos atributos simbólicos, corporais e psíquicos de um sexo, de uma “raça” ou de uma classe

Notas

¹ Apesar de o presente texto refletir exclusivamente minhas posições pessoais, teria sido impossível escrevê-lo sem ter tomado parte no movimento lésbico e feminista. Faço questão de sublinhar a importância teórica e política que tiveram para mim os grupos Comal-Citlamina, Archives lesbiennes, La Barbare, Media Luna, Próximas, 6 de Novembro e Cora. G, notadamente. Agradeço igualmente a Nasina Moujoud, Florence Degavre, Ochy Curiel, Natacha Chetcuti, Cécile Chartrain e Nicole-Claude Mathieu por seus preciosos comentários.

² A fim de contrabalançar a forte tendência à naturalização de numerosas categorias de análise, que frequentemente se confundem com categorias do senso comum, eu emprego neste texto numerosas aspas. Eu chamarei de “mulher” entre aspas uma pessoa socialmente considerada mulher como tal, em determinada sociedade, independente- mente de toda consideração naturalista.

³ Utilizo aqui o conceito de “raça” para designar o resultado de uma relação social que inclui diversas dimensões, como a “cor”, mas também o status migratório ou a nacionalidade, entre outros.

⁴ As categorias Sul, Norte e Ocidente são categorias políticas. Não se trata de modo nenhum de blocos monolíticos e ahistóricos. O Ocidente é múltiplo e contrastado, assim como o Sul e o Norte; eles são atravessados por contradições de sexo, classe, “raça”, regionais, etc., e estão permanentemente em transformação.

⁵ Não posso entrar aqui na complexidade das designações de cada tendência lésbica e feminista. Para mais precisões sobre as correntes no seio do movimento lésbico, pode-se ver Falquet (2004) ou Turcotte (1998).

⁶ É claro, o mundo é infinitamente mais vasto que estes dois países, mas é neles que viviam as militantes e teóricas cujo trabalho eu escolhi apresentar, tendo consciência de que estava deixando de lado outras reflexões importantes.

⁷ Desde 1982, quando do X Congresso Mundial de Sociologia no México, que Nicole-Claude Mathieu apresentou as bases deste trabalho. Ele foi em seguida publicado em uma obra coletiva, depois retomado em 1991 no livro de Mathieu já mencionado, que dá uma visão de conjunto das suas pesquisas: L’Anatomie politique [A anatomia política].

⁸ “No Modo III de conceitualização da relação entre sexo e gênero, a bipartição do gênero é concebida como estranha à “realidade” biológica do sexo (a qual se torna, aliás, cada vez mais complexo identificar), mas não, como veremos, à eficácia de sua definição ideológica. E é a própria ideia desta heterogeneidade entre sexo e gênero (sua natureza diferente) que leva a pensar que a diferença dos sexos tampouco seja “traduzida” (modo I), ou “expressa” ou “simbolizada” (modo II) através do gênero, mas que o gênero constrói o sexo. Entre sexo e gênero, é estabelecida uma correspondência sociológica, e política. Trata-se de uma lógica antinaturalista e de uma análise materialista das relações sociais de sexo” (Mathieu, 1991, 255–256).

⁹ Eu emprego o adjetivo patriarcal não para designar um sistema que seria universal e a-histórico (ideia que foi amplamente criticada e invalidada, ideia aliás incoerente com a perspectiva de uma coformação das relações sociais de poder), mas para qualificar certas configurações das relações sociais de sexo desfavoráveis às mulheres (as relações sociais dentro de um grupo dado em uma época dada podem ser mais ou menos patriarcais, quer dizer, mais ou menos opressivas para as mulheres, exatamente como podem ser mais racistas, por exemplo).

¹⁰ Matrilinear: sistema em que o fato de pertencer a um grupo é determinado segundo a linhagem materna. Uxorilocal: sistema em que, após o casamento, o esposo vai morar na casa da esposa.

¹¹ É por isso que a transgressão por certas “mulheres” da aparência socialmente prescrita para as mulheres e sobretudo de seu lugar na divisão do trabalho, é particularmente sancionada na maioria das sociedades (as “mulheres” que se recusam à maternidade e/ ou à criação dos filhos, ao trabalho doméstico, ao intercâmbio econômico-sexual com os “homens”, ou ainda que pretendem ganhar um salário melhor que o dos “homens” e exercer posições de poder). Para ter esperanças de contornar estas sanções, é necessário ser particularmente hábil, dispor de apoio coletivo e/ou beneficiar-se de privilégios de idade, de “raça” e/ou de classe.

¹² “Butch” designando as lésbicas “masculinas” e “fem” as lésbicas “femininas” (Chetcuti, 2008; Lemoine, Renard, 2001).

¹³ Para a América latina, pode-se consultar o trabalho pioneiro de Norma Mongrovejo (2000).

¹⁴ As diversas teorizações do “ponto de vista”, desenvolvidas mais particularmente por Patricia Hill Collins, Sandra Harding e bell hooks, implicam (1) a reflexividade dos(as) pesquisadores(as) em relação à sua posição social de sexo, classe e “raça”, entre outras, no momento de efetuar seu trabalho, (2) levar em consideração o ponto de vista a partir do qual uma teoria é desenvolvida, em vista de saber que lugar dar a ela na análise.

¹⁵ A partir dos anos 1980, Rubin desenvolve análises que se distanciam da corrente teórica que eu apresento aqui, ao reduzir a sexualidade lésbica a uma sexualidade (oprimida) entre tantas outras.

¹⁶ Com efeito, depois de ter publicado os dois artigos de Wittig e no contexto de um conflito mais amplo no seio do movimento feminista na França, em torno da questão do assim chamado “separatismo lésbico”, na verdade a questão da lesbianidade radical, a revista Questions féministes [Questões feministas] se desintegrou. Quando ela reaparece, sob o nome Nouvelles Questions féministes [Novas questões feministas], publica imediatamente a tradução do artigo de Rich, apresentando-o no editorial como a sua “nova linha” (Nouvelles Questions féministes, 1981). Mais que a oposição Wittig/Rich, seria importante explorar mais profundamente as causas e consequências desta cisão, que afetou profundamente o desenvolvimento teórico da corrente feminista materialista francesa. Seria necessário analisar em paralelo (1) a invenção, nos Estados Unidos, do “French feminism [feminismo francês]” (Delphy, 1996; Moses, 1996), (2) as evoluções teóricas de autoras como Gayle Rubin e do movimento feminista e lésbico norte-americano sobre a sexualidade, a partir da conferência do Bernard College em 1982 sobre “política sexual”, e (3) bem mais recentemente, em um outro campo disciplinar, a rápida ascensão das teorias butlerianas, em parte apoiadas em uma interpretação de autores(as) franceses(as), dentre as quais Wittig.

¹⁷ Artigo inicialmente publicado na Signs, em 1981, e traduzido em Nouvelles Questions féministes (Rich, 1980; 1981).

¹⁸ “On ne naît pas femme [Não se nasce mulher]” e “La pensée straight [O pensamento hétero]”, frutos de um trabalho apresentado primeiro em inglês, por ocasião de uma conferência realizada em 1978 nos Estados Unidos, e publicado em francês em 1980 (Wittig, 1980; 1981).

¹⁹ Sou eu quem sublinha.

²⁰ Lésbico, gay, bissexual, trans, queer e intersexo.

Notas de edição

ᶦ des-locam, conforme original: “les mouvements gays mixtes dé-placent la question…”

ᶦᶦ socio-antropológicas, conforme original: “(…) je precéderai à quelques rappels socio-anthropologiques…”

ᶦᶦᶦ socio-lógica, conforme original: “Correspondance socio-logique entre sexe et genre…”

Bibliografia

Você pode encontrá-la no link original anexado no início do texto

Publicado originalmente em: Revue Genre, Sexualité & Société, numéro 1, juin 2009, Institut de Démographie de l’Université Paris 1 — Panthéon Sorbonne (IDUP), Iris — Institut de recherches interdisciplinaire sur les enjeux sociaux (CNRS-Inserm-EHESS-Université Paris 13) et Maison des Sciences Humaines de Paris-Nord (MSH-PN). Tradução devidamente autorizada pela autora e por Revue Genre, Sexualité & Société.

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