Mulheres devem ser belas.

LUA
7 min readMay 10, 2021

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Trecho do Capítulo 6 de Woman Hating — Andrea Dworkin, você pode acessá-lo traduzido por Carol Correia aqui em PDF e ePUB.

Andrea Dworkin

Mulheres devem ser belas. Todas os repositórios de sabedoria cultural de Rei Salomão e Rei Hefner concordam: mulheres devem ser belas. É a reverência da beleza feminina que informa o ethos romântico, lhe confere energia e justificação. Beleza é transformada nesse ideal dourado, Beleza — arrebatadora e abstrata. Mulheres devem ser belas e mulheres é beleza.
Noções de beleza sempre incorporam toda a estrutura social, são cristalizações de seus valores. A sociedade com a bem definida aristocracia terá padrões aristocráticos de beleza. Na “democracia” ocidentais, noções de beleza são “democráticas”: mesmo se uma mulher não nasce bonita, ela pode fazer ela ser atraente.

O argumento não é simplesmente que algumas mulheres não são belas, então não é justo julgar mulheres em base de beleza física; ou que homens deveriam olhar o caráter em mulheres; ou que nosso padrão de beleza é muito paroquial em e fora de si mesmos; ou ainda que julgar mulheres segundo a conformidade com o padrão de beleza serve para faze-las em produtos, bens móveis, diferindo da vaca favorita do fazendeiro apenas em termos de forma literal. A questão em pauta é diferente e crucial. Padrões de beleza descrevem em termos precisos o relacionamento que um indivíduo terá com seu próprio corpo. Eles prescrevem sua mobilidade, espontaneidade, postura, marcha, os usos que ela pode colocar seu corpo. Eles definem precisamente as dimensões de sua liberdade física. E, é claro, o relacionamento entre liberdade física e desenvolvimento psicológico, possibilidade intelectual e potencial criativo é um passo umbilical.

Em nossa cultura, nenhuma parte do corpo da mulher é deixado intocado, inalterado. Nenhuma característica ou extremidade é poupado de arte, ou dor, de melhoria. Cabelo é tingido, lacado, alisando, passado permanente; sobrancelhas são arrancadas, delineadas, tingidas; olhos são alinhados, passado sombra; cílios são enrolados, ou falsos — de cabeça aos pés, cada característica do rosto da mulher, cada seção do corpo dela está sujeito a modificação, alteração. Essa alteração é um processo contínuo e repetitivo. É vital para a economia, a principal substância de diferenciação de papeis masculino-feminino, o mais imediato físico e psicológico realidade de ser uma mulher. A partir da idade de 11 ou 12 anos até ela morrer, a mulher vai gastar grande parte de seu tempo, dinheiro, energia em enfaixar, arrancar, pintar, e desodorizar ela mesma. É comum e erroneamente dito que travestis
masculinos através do uso de maquiagem e figurino caricatural, eles se tornariam mulheres, mas qualquer real conhecimento do ethos romântico deixa claro que esses homens têm penetrado na essência da experiência de ser mulher, uma construção romantizada.

A tecnologia da beleza, e a mensagem que carrega, é dada de mãe a filha. Mãe ensina a filha a aplicar batom, a raspar abaixo dos braços, a enfaixar os seios, a usar cinta e sapatos de salto alto. Mãe ensina filha concomitantemente seu papel, seu comportamento adequado, seu lugar. Mãe ensina filha, necessariamente, a psicologia que define a feminilidade: a mulher deve ser bela, em ordem de agrada a Ele. O que nós chamamos de ethos romântico opera vividamente no século 20, Amerika e Europa como foi no século 10 na China.

Esta transferência cultural da tecnologia, papeis e psicologia virtual afeta relacionamentos emotivos entre mães e filhas. Isso contribui substancialmente para a dinâmica ambivalente de amor-ódio de relacionamentos. O que deve as filhas/crianças chinesas sentirem em relação a mãe que enfaixou seus pés? O que uma filha/criança sente em relação a mãe que a força a fazer coisas dolorosas a seu próprio corpo? A mãe assume o papel da executora: ela usa sedução, comando, todas as maneiras de força para coagir a filha a se conformar as demandas da cultura. É por causa desse papel, que se torna seu papel dominante no relacionamento mãe-filha que tensiona e dificulta o relacionamento mãe-filha, de modo que as dificuldades entre mães e filhas são muitas vezes insolúveis. A filha que rejeita as normas culturais impostas pela mãe é forçada a basicamente rejeitar a própria mãe, o reconhecimento do ódio e do ressentimento que ela sentia em relação a mãe, uma alienação da mãe e da sociedade tão extrema que sua própria feminilidade é negada por ambos. A filha que internaliza esses valores e endossa esses mesmos processos esta fadada a repetir os ensinamentos que foram ensinadas a ela — sua raiva e ressentimento permanecem subterrâneos, canalizados contra sua própria descendência, assim como sua mãe.

Dor é parte essencial do processo de crescimento, e isso não é acidental. Tirar as sobrancelhas, raspar abaixo dos braços, usar cinta, aprender a andar em sapatos de salto alto, ter o nariz consertado, alisando ou enrolando o cabelo — essas coisas machucam. A dor, é claro, ensina uma lição importante: nenhum preço é tão alto, nenhum processo é tão repulsivo, nenhuma operação é tão dolorosa para as mulheres que querem ser belas. A tolerância da dor e a romantização dessa tolerância começa aqui, na pré adolescência, na socialização, e serve para preparar mulheres para vidas de gerar crianças, de renúncia de si mesma, de agradamento de marido. A experiência adolescente do “dor em ser mulher” casta a psique feminina em um molde masoquista e força a adolescente a conformar a uma autoimagem que se baseia em mutilação do corpo, dor felizmente sentida, e restrição da
mobilidade física. Ele cria personalidade masoquistas geralmente encontradas em mulheres adultas: subservientes, materialistas (uma vez que todo o valor é localizado no corpo e em sua ornamentação), intelectualmente restrita, empobrecida criativamente. Obriga mulheres a serem um seco menos realizado, tão subdesenvolvido como uma qualquer nação atrasada.

Realmente, os efeitos dessa relação prescrita entre mulheres e seus corpos são tão extremos, tão profundos, tão extensos, que praticamente qualquer área de possibilidade humana é deixado intocado por ele.

Homens, é claro, gostam de mulheres que “cuidam de si mesmas”. A resposta masculina para as mulheres é inventada e atada é um fetiche aprendido de sociedade em suas dimensões. Basta referir-se a idealização masculina do enfaixamento de pés e dizem que a mesma dinâmica se opera aqui. Romance é baseado da diferenciação dos papeis, superioridade é baseada em uma determinação cultural que rigidamente reforça inferioridade, vergonha e culpa e medo as mulheres e o sexo em si mesmo: todos necessitam da perpetuação desses imperativos de crescimento opressivos.

O significado dessa análise do ethos romântico certamente é clara. O primeiro passo nesse processo de libertação (mulheres de sua opressão, homens da falta de liberdade de seu fetichismo) é a redefinição radical do relacionamento entre mulheres e seus corpos. O corpo precisa ser livre, liberto, literalmente: de pintura e cintas e todas as variedades de porcaria.
Mulheres devem parar de mutilar seus corpos e começar a viver neles. Talvez a noção de beleza que vai, então, organicamente emergir vai ser realmente democrática e demonstrar o respeito pela vida humana em sua infinita e mais honrável variedade.

“Somos uma máscara que se apresenta ao mundo de determinada maneira para sermos mais aceitas por ele. O mundo feminino tem de mudar a sua imagem. Estamos aprisionadas a estereótipos que nos machucam e nos impedem de progredir como seres humanos.” — Andreia Nobre

“A submissão ritualizada é, também, comportamental: quando nos sentamos sempre de pernas fechadas/cruzadas, quando nos esforçamos a manter uma postura delicada, uma imagem dócil, quando não nos permitimos movimentos bruscos, quando falamos baixo para não incomodar, quando nos deixamos interromper, quando nem chegamos a falar, enfim, quando nos submetemos, estamos sendo femininas.” — Nathália Gouveia

“A supervalorização da nossa aparência em detrimento de qualquer outra coisa é uma máscara de uma intenção mais profunda: a redução das mulheres a seus corpos. A ditadura da beleza, os padrões estéticos, os rituais de feminilidade — todos eles têm ligação íntima com a cultura do estupro, pois são eufemismos socialmente aceitáveis daquela velha ideia de que nós só servimos para servir. Para sermos olhadas, trocadas, exploradas ou fodidas. Temos de estar bonitas pra quem? Pra nós mesmas? E desde quando alguém nos pergunta a nossa opinião?” — Furiosa

“Se o objetivo da feminilidade é justamente demarcar nosso sexo para garantir a manutenção da supremacia masculina, deveria ser óbvio para todas as feministas que ela é totalmente contrária aos propósitos revolucionários do feminismo. Adianta muita coisa termos conquistado ‘o direito’ de participar da política, de jogar futebol, de trabalhar, de participar da vida pública, enfim — , se, para isso, ainda precisamos usar vestido? O objetivo das feministas, 150 anos atrás, não era precisamente acabar com a desigualdade entre os sexos? Qual a lógica de, atualmente, acharmos que vamos conseguir isso sem abrir mão de uma das principais ferramentas de manutenção e de reprodução dessa mesma desigualdade?” — Furiosa

ROMPENDO A FEMINILIDADE- UM CONVITE PARA A PRÁXIS RADICAL — Coletivo Perseguidas

Material sobre feminilidade do QG Feminista:

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