Incidências Lésbicas ou o Amor ao próprio reflexo

LUA
18 min readMay 16, 2021

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Trecho da Terceira Parte do livro “O Triunfo da Masculinidade” de Margarita Pisano (2004). PDF aqui (tradução coletiva feita pelo grupo Estudos no Brejo) e Zine aqui (tradução por HERETIKA edições lésbicas independentes)

Margarita Pisano

“Antes que existira ou pudesse existir qualquer classe de movimento feminista, existiam as lesbianas, mulheres que amavam a outras mulheres, que recusavam cumprir com o comportamento esperado delas, que recusavam definirem-se em relação aos homens, aquelas mulheres, nossas antepassadas, milenares, cujos nomes não conhecemos, foram torturadas e queimadas como bruxas.” — Adrienne Rich

(Tudo está se processando na história, e segue esse velho tema do amor, o Casal¹ e os limites)

Nós mulheres viemos sustentando longas lutas externas e internas com nossas capacidades, de querer ser atuantes de nossos desejos, de nos entendermos como mulheres individual e coletivamente. Nossos diálogos fundamentalmente têm sido de feminilidade a feminilidade, ou seja, sempre dentro do macro da construção simbólica patriarcal a construção patriarcal que tem feito de nós, desse dever-ser como pessoas e de nossos corpos. O diálogo mulher/mulher é ainda pendente, pois o único diálogo que existe até agora, aquele que se tem memória e que transcende a história, é o feminino-feminina. Neste diálogo se prima pela alheidade da mulher, é um diálogo “do outro”, baseado no condicionamento ao amor patriarcal e não na legitimação entre mulheres como conjunto pensante. Mais ainda, dentro da construção do amatório² tivemos sido separadas, enquanto que os homens consolidam sua cultura legitimando- se, admirando-se e amando-se entre eles.

Tivemos que nos declarar meio tontas para existir e permanecer no prado marcado e sinalizado da feminilidade, e isto tem mais transcendência do que à primeira vista aparece. Estratégia de sobrevivência, que custa nossa dimensão humana, pensante e atuante, o prejuízo do diálogo mulher/mulher que é sempre postergado pelos interesses práticos que se funcionalizam junto aos da cultura vigente, e que jamais, partindo desse lugar, serão geradores de outra cultura, já que os interesses das mulheres não têm nada a ver com os interesses da feminilidade. Devemos saber nitidamente que a feminilidade é uma construção organizada dentro da masculinidade e à serviço desta.

Enquanto não sejamos capazes de interrogar o desenho que outros fizeram do nosso pensamento, de nossa forma de entender a vida e sua transcendência, de criar outros modelos, de nos abrir a atração entre mulheres, de nos abrir a necessidade de entrar em diálogo com uma outra igual, não amaremos a nós mesmas, não nos amaremos como mulheres e, fundamentalmente, não nos respeitaremos como um gênero e como espécie.

Ao interrogarmos o desenho que têm feito de nós, começamos a ser sujeitas atuantes, a desconstruir a misoginia — consigo mesma e com as demais –. Sem essa condição básica só seremos convidadas de um sistema que pensa por nós, que se erotiza com nossos corpos e não com nosso pensamento. Estaremos sempre um pouco fora, fora do mundo, fora da cultura, fora da política e fora de nosso próprio corpo, caindo facilmente nos processos esquizofrênicos desta sociedade.

As mulheres que se declaram profundamente heterossexuais, que divinizam o corpo masculino, como corpo simbólico que necessitam e adoram, e que, porém, é aquele que as menospreza, o que as tem submetido a secundariedade da espécie humana, que tem possibilitado a permanência e onipotência da masculinidade, mantendo-nos nesse ser estrangeira no nosso próprio corpo. Porém, existe uma memória velada de nós, que forma parte de nossa história, ainda que se encontre subsumida³ na história da “feminilidade” e que é muito difícil desentranhar, justamente pela alteridade a que temos sido submetidas, um desejo que poderíamos associar à paixão mais que ao amor, a solidariedade ou a amizade, esse desejo de aprender/ nos aprender, de nos conhecer, de nos descobrir, nos mobiliza para começar o caminho de recuperação de nós mesmas e de nossa verdadeira história.

Desse lugar da paixão, quem sabe, seja possível entender-nos e entender as coisas que nos acontecem como mulheres/entre mulheres. Desde a feminilidade construída é muito difícil entender essa paixão, pois a memória tem sido apagada e não se deixa circular, porque indiscutivelmente o sistema insere a feminilidade misógina, que propõe o ódio a nós mesmas, embora algumas vezes nos erotizemos este espaço. Por isso quando nos erotizamos neste espaço já significado da feminilidade, ficamos estacionadas, só trocamos o corpo da erótica, o corpo do desejo.

Essa memória da paixão existe entre nós, temos que encontrá-la e significá-la no tempo, registrá-la e fazê-la sair do lugar do nada. A masculinidade tem uma preocupação especial de invisibilizar e eliminar a memória do nosso corpo, porque é ali que radica sua vigência, neste gesto amnésico constitui seu poder. É nossa responsabilidade e nosso desafio entender e reconstruir essa dimensão de desejo/paixão/ de nos conhecermos. E mais, toda mulher conserva essa memória/imemoriada e sua forma de se relacionar com outra mulher está transpassada por esse conteúdo.

Nada poderia propor-se desde o feminismo e, em especial, desde o feminismo radical, que não passe por recuperar e reconstruir esta outra história de mulheres. Em todo ser humano existe a potencialidade de atravessar os limites culturais da heterossexualidade. Apenas aceitando essa potencialidade poderemos nos desfazer dos preconceitos contra lésbicas e homossexuais. Me atreveria afirmar que para além de romper com preconceitos, assumindo esta potencialidade não estática da erótica, é necessário começar a nos limpar da misoginia do sistema, que não é o mesmo exercício que executam os homens, nem os homens homossexuais, pois eles sempre se amaram e armaram misoginamente, onde quer que estivessem.

Sempre contamos com uma amiga íntima, uma outra que nos apoia, uma aliada e é com esta outra que se cruzam nossos pequenos incidentes lésbicos negados. Esta negação se enraíza na sensação de terror de descobrir-se pensando ou sentindo passar o limite do permitido, sustentado na formação dos modelos de erótica e da ética/moral estabelecidos. A mulher se paralisa ante a sanção iminente⁴ do sistema, se nega a si mesma, para não ser negada duas vezes: uma por ser mulher e a segunda por ser lésbica. As que recusam cumprir o comportamento esperado são minorias rebeldes que nos fazem valentes, que transitam e assumem a lesbianidade e se abrem compreender, rompendo o círculo sinistro da culpa e do medo com que foram socializadas. O medo à lesbianidade é um dos medos mais importantes que a sociedade inventou, não é inocente, tem sido um dos melhores desenhos e adestramentos imobilizadores para as mulheres. Embora a lesbianidade não se pratique como erótica, a memória que temos deste gesto amatório sancionado insere, através de sua negação, a desconfiança entre as mulheres.

Uma grande parte dos problemas que temos para fazer amizade entre mulheres passa por essa paixão/desejo de conhecer-nos, esta paixão não reconhecida, nem aceita, mesmo nos níveis mais ocultos de nossa consciência, que chega a profundidades inesperadas.

Paixão/desejo que ao ser constantemente postergada, se transforma em rechaços, traições e ódios fora da razão e do tempo, pois é a outra a deflagradora desta paixão sancionada, a culpada: a Eva tentadora do mal, a que faz cair o homem, e que desta vez nos faz cair, a nossa Eva.

É difícil construir uma amizade que não esteja prejudicada e permeada por esta proibição misógina de amar-nos. Que memórias não recordadas arrastamos? Que histórias de sensações de ardores e perdições trazemos por nos gostarmos? Que mandatos afim de odiarmos, sem sequer entender o que se passa? Porém, como nos sentimos cômodas estando entre mulheres.

Como nos querer de outra maneira, sem os papéis, as inseguranças, as demandas de propriedade/fidelidade, sem o drama, o tango, o bolero, o segredo, sem nos trair constantemente. É precisamente neste espaço amoroso onde podemos reinventar outras formas de amor, esse outro amor, essa suspeita de outra cultura, onde sejamos mulheres pensantes e não inventadas por outros, onde redesenhar outras formas de convivências entre seres humanas, que não seja a de casal do domínio. Como o modelo amatório é masculinista em sua essência, a construção do casal está patriarcalizada pelo domínio, expressando-se na construção convencional do amor- casal, romântico e pegajoso, que arma essa escassez de amor, no discurso de amor único, a dois, em casal e para sempre, que finalmente mata os amores, por culpa ou de tanto amor, que insere a dor mais que o amor. A escassez, não a abundância. O encarceramento e não a liberdade. Uma morre sempre de algum desses males: doem o mesmo, matam o mesmo.

A estética e a construção do amor patriarcal estão contidos na ideia e na visão da escrava, a dominada, a depositária de desejo, a que dá continuidade a linhagem, a guardiã de seus interesses, aprisionada de seu poder e dos valores que o sustentam. Devemos desconstruir a estética da escrava e ver a submissão, o maltrato, a secundariedade como uma expressão final das relações humanas, onde começam as transgressões. Assim mesmo, continuam sendo uma minoria as mulheres que já não suportam o maltrato físico, devemos deixar de suportar o maltrato cultural, que não tem mudado e que só afinou essa visão estética de dominação, implicada e retorcida na feminilidade.

A ética de lesbos deveria conter uma proposta de horizontalidade, porque só nesse plano sucedem os intercâmbios pessoa-pessoa. Esse espaço amoroso que devemos desenhas, reinventar e narrar, para construir um saber-amar outro, que nos acumule em sociedade de outra maneira. Devemos ter cuidado de não readequar a ideia de casal, acreditando que inventamos outro modelo, isso não seria mais que um reacomodo a mesma lama patriarcal. A cultura vigente nos faz acreditar que somos diferentes, que nossas construções de casal são únicas e exclusivas, ao mesmo tempo que nos submerge em seus costumes e valores, fazendo com que todos, de uma maneira ou outra, repitam o mesmo modelo.

Reinventar as relações leva ao ato de repensar a nós mesmas como sujeitos culturais, repensar nossas formas de nos relacionar, repensar nossos conceitos de casal, que tem uma regra – se é que podemos falar de regras – que é não enganar a nós mesmas. Quando falo de enganar, não falo fidelidades, senão de não disfarçar nada, de não esconder nada, nem nos proteger, nem proteger a outras. Tudo isso tem uma dose grande de valentia, de riscos de assumir-se sem proteções próprias nem alheias; contém a uma desbravadora, uma aventureira, para quem nada é intocável e inquestionável, nada é sagrado. Esse gesto tem um objetivo claro e profundo, de fazer das pessoas expressadas, livres e mais humanas, o que não se deve confundir com se fazer “boa”, porque geralmente alude ao contrário da moral sacrificada. O ser-boa amortece, esconde, nega, se arma no sacrifício e na hipocrisia do romantismo, se fere em autoflagelação... e a essa altura do conto, muitas já sabemos o difícil e doloroso que é não contar finalmente o conto, quando temos outro conto.

Se não reestruturamos, redesenhamos, reumanizamos e repensamos o espaço lésbico, acabamos caindo na exaltação patriarcal do romântico amoroso sentimental onde acreditamos estar livres da traição dos homens, exaltando a feminilidade-feminilidade: o amor sem limites dentro da irracionalidade; o amor sentimental, sacrificado, bom, inquestionável, maternal, sagrado, o amor em si mesmo como contido de honestidade e de interesses comuns, que não se pensa, como se não tivesse uma pessoa responsável por detrás, com seus valores, sua cultura, suas proposições de vida, sua própria biografia. E é precisamente aqui de onde o patriarcado tem sua armadilha, pois a transgressão não radica em ultrapassar o limite demarcado da erótica estabelecida, senão em pensar tal transgressão, em desenhar estratégias políticas para que tal transgressão não seja, como todas, recuperada.

Se não repensarmos o casal como a base do clã familiar patriarcal, onde se sistematiza essa sociedade e onde se aprende o poder sobre as pessoas e o pertencimento como propriedade privada, seguiremos repetindo o modelo: casar, legitimar-nos perante o sistema, ter filhas e, se não tivermos, suprir com gatos ou cães que serão cuidados como se fossem filhas.

No fim, a cadeia não se detém em estabelecer as imitações da família, a família de mentira que é pior que a família da consanguinidade. Não estou dizendo que não há que se amar as crianças ou aos animais, senão que não se deve usá-los como suplentes, nem os confundir como tão facilmente nos confunde a cultura: tratando as crianças como animais e aos animais como crianças, sem respeitar nenhum deles afinal.

O casal existe porque existe a lógica do domínio. Nessa lógica se exercita a cultura masculinista, daí o tópico: “Vale tudo no amor e na guerra”: serviço secreto, ter cativos, reféns, estratégias, assaltos, traições, planificação de ataque, imolações, derrotas, vitórias, etc. Essas manobras se disfarçam na guerra atrás do halo⁵ heroico salvador, enquanto no plano amoroso são pintadas de novela rosa.

Esta cultura não entende nem constrói seres livres e autônomas, pelo contrário, as confunde, as faz carentes, de tal maneira a se verem obrigadas a se completarem em outra/outro, do qual depende e que o constrói socialmente. Uma pessoa sem necessidade de completar-se está em desvantagem ante o sistema, mas ao mesmo tempo, está em completa vantagem sobre si mesma, conta com o poder de desenhar sua vida em liberdade. O sistema sanciona os gestos libertários que atentam contra a ordem da estrutura social, dado que está pensado para seres carentes, que sejam manipuláveis. Um ser libertário, ao contrário, não é manipulável nem infantilizado. A estrutura social está idealizada para sujeitos estanques, crentes nesta cultura, que fazem imóveis as mudanças que necessitamos para criar uma cultura mais horizontal e respeitosa. Muito diferente é falar da liberdade de estar, amar e transitar acompanhada com outra/outro, que estacionar em um casal patriarcalizado com a projeção de ser para vida toda, repetindo o modelo da propriedade privada.

O casal (matrimônio) se arma de tal maneira que um tem o poder e o outro o contrapoder, papéis que se invertem às vezes, mas que se fixam aos indivíduos na ambição de domínio, embriagando-se deste jogo de ter um pequeno poder. Cativa as pessoas com o mandato da segurança que proporciona a fidelidade = vigilância, com o qual essa construção baseada no amor sistêmico, termina por prender o amor e matá- lo.

Apesar de, nós mulheres, não termos inventado essa construção amorosa, somos as mais presas a ela, já que nos coloca como as próprias guardiãs da feminilidade, tendo que prestar contas, explicar-se: por que olhou, por que não chegou, por que pensou, por que vai embora, por que voltou, por que sonhou, por que gritou, por que se rebelou.

Outros modos, outros ensaios de convivências são invisibilizados e castigados, pois o sistema está sempre vigiando e temendo sua possível queda.

Como lésbicas, temos uma história gestual e política de vida que vai mais além do relato amoroso. Submergir-se em um casal já tão significado tem muitos custos, custos de vidas inteiras, do mesmo modo que sair das atuais formas de amar com suas fidelidades e lealdades. Não há modelos, não há registro, não há rastros, apesar de haver muitos ensaios silenciados, não temos ideia de como fazê-lo. Com tantas inseguranças, carências e medos com que nos socializam, vivemos sofrendo, porque somente submergidas no drama sentimos que amamos, que vivemos e morreremos ao mesmo tempo. O drama carece de reflexão e aqui está mais um dos gestos que nos submetem e nos recuperam.

Para que o sistema e sua engrenagem de relações funcione, deve existir uma proprietária ou proprietário, uma depositária do sacrifício de nos entregar. Insisto que o sacrifício é uma armadilha e enquanto não descobrirmos o quão nocivo é essa forma de amar sofrendo, seguiremos permeadas de sacrifício de uns por outros... e não estaremos saindo de toda a hipocrisia antagônica do sistema. Não necessitamos ser mártires, nem crer em cruzes para construir o respeito do humano, pois recriando casais sacrificados, não se constrói nenhum respeito e isso sim é um gesto político.

Romper nossas necessidades tão profundamente inscritas, com argumentos culturais e biologistas de complementariedade, nos têm levado a entender o amor somente em sua dimensão reprodutiva, protetora e cuidadora do casal heterossexual, tão funcional a um sistema capitalista e neoliberal que necessita deste ordenamento de posse.

O casal lésbico deveria romper com esta construção cultural, mas se embaraça, se confunde: por um lado se mantém em um meio totalmente hostil que faz com que se unam, se protejam, se fechem em si numa condição de sobrevivência e, por outro lado, ao sairmos da estrutura do amor reprodutivo e de domínio, tomamos para nós o discurso romântico amoroso sentimental. O homem, infiel por natureza, já não é requisitado no jogo amoroso, consequentemente, se nos juntamos duas mulheres que somos as fiéis por natureza, as que sim sabemos amar, as que amamos sem limites, traduzimos essas fidelidades em clausuras, salvamos o sistema. Nos enclausuramos, nos sistematizamos, nos ordenamos em casais e nos perdermos como pessoas individuais, simbiotizando-nos com a outra em um gesto siamês. Todas as a alternativas de liberdade, de amor, de vida, de Eros acabam presas, pois o amor é um dos lugares de expressão mais direto do poder, por isso está sempre em crise e há cada certo tempo voltará a aparecer a necessidade de outro Eros, outros despertares corporais, outros desejos de liberdade.

O casal já significado faz perder não só o amor, senão o desejo de aventura, de aventurar-se em outros seres, de aventurar-se em novas sociedades, novas culturas, novas formas de relação. Sufoca aquela ânsia de liberdade e é justamente aí onde aparecem os seres quebrados por dentro e por fora, toda essa quantidade de seres humanos que não estão vigentes, pois depositaram em outra pessoa toda sua capacidade erótica, amorosa, criativa, para se transformarem em seres amputados. Isso que parece pertencer exclusivamente ao mundo do amor, ao mundo privado, é a representação do mundo concreto, político, da vida cotidiana que construímos como sociedade.

A quem estamos entregando o poder sobre nós? Quanto tempo na história respondemos a família? Que é quem nos julga, mal ama e finalmente nos insere em uma sociedade a sua imagem e semelhança. Como viver nossos amores e desamores de tal maneira que sejam uma proposta de respeito humano e liberdade, mais além das proteções e os sacrifícios nos moldes de propriedade e fidelidade masculinista?

Quando poderemos retomar a narração própria da sexualidade das mulheres e a sexualidade lésbica, não na linguagem da negação que temos tido até agora, não na linguagem da sexualidade legitimada e profissionalizada, hoje tão na moda, resguardada constantemente em sacralidades, poderemos limpar esse espaço cheio de banalidade, de romantismo sadomasoquista e conseguir fazer diferente.

O amor não é um só na vida, não nasce espontaneamente, existe um fiar de amores que vão se esgarçando com o tempo. Cada um tem um sentido, cada um traz uma proposta e em cada um vai ficando um pendente. Todos os pendentes, acumulados, reservados no tempo aparecem reais e concretos no amor presente e, esse último, vai constituir outro pendente no futuro. O amor não é um só nem morre em um acidente na esquina, é um exercício constante, aparece como aparecem os seres humanos – diferentes, nos provocam novos desafios de nos entendermos, novos desafios de redesenharmos e sararmos do maltrato cultural e compreender que existem múltiplas maneiras de entender o compromisso com outra pessoa. Esse compromisso só pode ser o de cuidar o mais que se possa do sentimento, que uma vez que começa também começa a desaparecer, como tudo na vida, tem um início, um tempo e um término.

Sei que os sonhos, os amores e as liberdades que não se vivem, morrem dentro de nós... te apodrecem, te matam pouco a pouco, olhe para esse mundo sem sonhos, sem amores, sem liberdades, morrendo.

Devemos ter claro que a masculinidade empoderada, empodera todos os homens, também os homossexuais. Em todos os momentos de exaltação da masculinidade ao longo da história, apareceram grupos de homens homossexuais mais ou menos legitimados na semipenumbra do poder, por isso é fundamental desentranhar todos os espaços legitimados na semipenumbra do poder. Não quero dizer que os homossexuais não sejam perseguidos, senão que gozam de certos benefícios, dos quais não gozam as lésbicas. O empoderamento dos homens é tal que inclusive o discurso de feminilidade é tomado por travestis, transexuais, e homossexuais, reinserindo a mais superficial e retrógrada das feminilidades, a que temos tratado de combater no feminismo radical.

A homossexualidade lésbica tem a potencialidade de aproximação de uma mudança cultural mais profunda, que não se corresponde a do movimento homossexual masculino, onde as políticas e o discurso estão definidos pelos homens machistas homossexuais e nos quais se repete a invisibilização que nós mulheres temos sofrido sempre e, consequentemente, não conseguem criar uma proposta transformadora. O que transforma a sociedade é uma visão crítica aos valores da masculinidade e suas instituições e essa reflexão não fazem os homens por razões óbvias, esse é seu lugar de poder e identidade.

A dimensão política lésbica não é a mesma que a do mundo homossexual macho. Embora esses rompam com o estereótipo da heterossexualidade, deixam intactos os valores que sustentam a masculinidade. Não questionam o sistema de domínio que faz possível o racismo, o sexismo, o classismo, o direitismo e por consequência, a homofobia do sistema, alimentando de uma maneira contraditória sua própria discriminação.

Repensar nossas formas políticas de nos relacionarmos é fundamental para não suplicarmos ao mesmo sistema que nos deslegitima, que nos legitime, fazendo dele duplamente poderoso. Quando falamos de sistema, estamos falando desde o núcleo familiar até as instituições, constituídos por seres de carne e osso. É aqui onde perdemos o rumo e onde perdemos o poder, porque não pode existir uma modificação do sistema por nós, sem que exista por sua vez um acomodamento de nós ao sistema. Por isso, mais além do direito de igualdade e a vocação de cada uma, creio que temos que repensar a vigência do matrimônio, que é uma instituição tão masculina quanto os exércitos. Deve haver uma divisão de águas com quem quer dar continuidade a um sistema injusto, arbitrário, racista, sexista, baseado na propriedade privada dos seres humanos e na supremacia do homem e sua cultura depredadora.

Um movimento lésbico-político-civilizatório, repensa todos os elementos que trançam o sistema, desse lugar desenha suas estratégias políticas. Não pode entregar sua reflexão a outros grupos marginalizados, já que a única coisa que nos une é a marginalização. Não temos os mesmos interesses políticos que os ecologistas, os gays, as travestis (que tem retomado e reinstalado o discurso da feminilidade), nem tão pouco com os diferentes projetos dos partidos políticos, muito menos com as igrejas. Todas estas instituições estão construídas do mesmo modo, todas juntas sustentam a estrutura da masculinidade. Não podemos nos negar a ver que o sistema masculinista é um grande quebra-cabeças onde as peças que não encaixam, que atentam contra a estrutura total, são eliminadas.

Sem repensar um movimento lésbico, político e civilizatório, não poderemos desarticular o sistema. Sem uma visão crítica não saberemos se é desde dentro do próprio movimento lésbico que estamos traindo nossas políticas e nossas potencialidades civilizatórias. Que custos tem tido essa sucessão de súplicas à maquinaria masculinista para que nos aceite e nos legitime? Estruturalmente é impossível, pois se ela nos legitima sem nos recuperar, é desarmada.

A análise da realidade desde a cultura vigente e suas propostas não é possível para nós, já que é um lugar onde nunca estivemos, nem estaremos nem nos pertence como análise. Devemos revisar cuidadosamente a necessidade de aderirmos a qualquer análise ou proposta de mudança que não provenha de nós mesmas, que não recupere nossas reflexões, nossa história política, nossa biografia e tudo o que têm escrito e pensado as mulheres ao longo de séculos, para não seguirmos repetindo uma e outra vez as estratégias fracassadas.

Pensamos que o acesso das mulheres na cultura a modificaria, porém, as mudanças dos bons costumes modernos têm sido apenas superficiais. Essa armadilha nos tem pego já demasiadas vezes, podemos fazer alianças circunstanciais, mas sem deixar que nosso discurso seja tomado por outros, manipulado por outros e despolitizado por outros.

Ao nos sentirmos tão fora do sistema, caímos na nostalgia da legitimidade que nos perde e nos trai. Acabamos querendo estar no centro do mesmo poder, quando o desafio político passa justamente por não colaborar com o sistema, nem nos funcionalizarmos para sustentá-lo. Por isso necessitamos de um espaço político a sós, onde criar com independência, um lugar de experimentação e estudo, onde não sigamos sendo queimadas em praças públicas. Não basta ser mulher, não basta ser feminista, nem basta ser lésbica para esboçar a ideia de outra cultura, é preciso se situar fora e inspecionar até o último canto da masculinidade para poder desconstruí- la.

Há um limite ético e político com nós mesmas e nosso corpo. Deixar as coisas como estão já não é possível, não existe essa realidade para nós.

Notas

¹Em espanhol, pareja se refere a relação de a dois, nos textos de Pisano, a crítica ao ‘parejismo’ se dirige aos relacionamentos de fusão, de se entender como “um” em uma relação, de fazer tudo junto, ter os mesmos planos, a mesma identidade, e toda ideologia romântica da ‘alma gêmea’, sua ‘metade’, a pessoa que te complementa e completa… Todas vezes que se referir a ‘pareja’ e ‘Casal’ no texto, a autora se refere à essa ideologia do casal nascida na família e propriedade privada (N.T.)

² Aquilo que é relativo ao amor, por exemplo poesias de amor, é uma literatura amatória. Uma forma de não usar o substantivo “amor” de uma forma essencialista, visto que amor é uma construção social (N.T.).

³ Incluir num contexto mais amplo: Subsumir um indivíduo numa espécie, uma espécie num gênero.

⁴ Utilizada para adjetivar algo ou alguém com qualidade de superior, excelência, que seja ilustre ou de grade importância.

⁵ Auréola.

Sobre a autora…

Margarita Pisano, arquiteta, feminista crítica da cultura contemporânea, escritora chilena. Fundadora da “Casa de la Mujer La Morada”, Rádio Tierra e do Movimento Feminista Autônomo. Em 1995 publicou o livro “Deseos de Cambio o… ¿El Cambio de los Deseos?” (Desejo de Mudanças ou… Mudança dos Desejos?), Em 1996 publicou “Un Cierto Desparpajo” (Um certo Disparate). Seu terceiro livro, intitulado “El Triunfo de la Masculinidad” (O Triunfo da Masculinidade), foi editado em maio de 2001. E seu último livro, “Julia, quiero que seas feliz” (Júlia quero que você seja feliz), publicado em Outubro de 2004. Esteve realizando cursos, oficinas e dando conferências em Latino-América e Europa. Sua vasta experiência de trabalho com mulheres de diferentes setores sociais a levou a aprofundar-se sobre os desafios da sociedade contemporânea. Publicou artigos em revistas chilenas, latinoamericanas e européias.

“Estamos experimentando novas formas de apresentar nós mesmas umas as outras. Quão mais distanciadas nos encontramos de uma maneira patriarcal de pensar, mais e mais feia nos tornamos para ‘eles’, e o mais e mais belas somos para nós mesmas” - ‘What The Well Dressed Dyke Will Wear,’ Liza Cowan. 1974. DYKE, A Quarterly №1

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