Assim, nasce mal o amor.

tradução livre da primeira parte do capítulo III do livro “Julia, quiero que seas feliz” de Margarita Pisano

LUA
4 min readDec 8, 2023

Se experimentarmos com nossa imaginação, podemos criar um sistema amoroso diferente. Para isso, é necessário aprofundar-se em uma análise crítica de como estruturamos nossas relações dentro da dinâmica de dominação e suas ideias, de como projetamos no ser amado o poder mágico de nos dar felicidade, desresponsabilizando-nos de nossa vida e da busca por equilíbrio e sabedoria. Essa espécie de felicidade eterna e de varinha mágica nos toca sem nossa vontade direta; logo aparecem as grandes decepções, que resolvemos sacrificando-nos por amor e alienando-nos.

O conceito de amor é a expressão de diferentes culturas baseadas na hegemonia masculina e nas suas ideias de dominação. A macrocultura em que os seres humanos são negociáveis e capturáveis se sustenta na ideia de propriedade sobre as pessoas. Esta ordem simbólica do amor traz consigo puro sofrimento, pois tem como contrapartida o amor-ódio, que não pode resultar numa sociedade baseada no respeito. Constroem-se fantasias que o amor não possui: não é compreensível, honesto, fiel e nem mesmo um lugar de direitos humanos. Todas estas condições estão presentes (ou não) nas pessoas devido aos seus valores e crenças culturais. Como é possível uma relação horizontal com alguém cujo impulso cultural é dominar o outro?

imagem gerada por IA e alterada pelo PhotoShop estilo “colagem manual”

O amor é simbolizado no sistema casal-reprodutivo, situando-se no mundo do casamento-família-consanguinidade com a sua projeção de fidelidade para toda a vida. É uma espécie de cercadinho que aprisiona de uma forma ou de outra. De vez em quando surge o desejo de liberdade e de pular cercas. A sociedade tentou regular estas fugas através do divórcio, mas com a projeção de um, dois ou três novos casamentos, desta vez, eternos e com o futuro de cuidar um do outro, onde se joga o conceito de velhice como rejeição. De fato, os casamentos que ultrapassam certa idade terminam cuidando um do outro, mas com uma lista de contas pendentes

A simbologia do amor está instalada dentro da irracionalidade: “perdi a cabeça (e o corpo) e isso não teve nada a ver comigo”. Esse toque de perder a cabeça é o amor romântico. Assim, criam-se os estereótipos das pessoas: as amadas, narradas na literatura, no cinema, nas capas de revistas e nas telenovelas; e as outras, as rejeitadas… as feias. Todas –as amadas e as rejeitadas– na in-felicidade da escassez dos amores…ódios.

A leitura superficial de quem não tem acesso a esta in-felicidade conjugal é a imagem e, pior ainda, a autoimagem de uma pessoa solitária e ordinária, nunca completa. Diante dessa perspectiva, as pessoas agarram-se a uma parceira por medo de atravessar esta solidão, que expressam — pelo que está estabelecido — a falta de sentido do viver. Este mundo social é pensado e sustentado no casal-conjugal, por isso, uma pessoa solteira, sem uma parceira estabelecida, começa a se tornar excluída. Assim, o amor nasce mal e nestas condições é o lugar da violência física, intelectual e psicológica. Entendido desta forma, o amor é o grande espaço de decepções, das ilusões nunca alcançadas.

Na realidade, não nos completamos em ninguém. Nem nada nos tira desta dimensão única e maravilhosa de sermos completas e em si mesmas. Se não descobrirmos isso, sempre estaremos correndo atrás de alguém ou de algo. É o desejo de ter-possuir para completar-se. Se isto não for entendido e redesenhado, dificilmente poderemos nos organizar com outros valores e desejos.

Definir e dominar a reprodução, a sexualidade, a vida e os corpos tem sido parte importante de todos os sistemas de poder. Esta importância do amor na vida não é a mesma para o homem e para a mulher. É nesse espaço amoroso que se ensina aos homens que eles têm direitos sobre as mulheres; é neste mundo de afetos que aprendemos a amar e a odiar ao mesmo tempo, aprendemos a amar aqueles que nos dominam num falso discurso de igualdade-propriedade-proteção. Os homens são socializados para liderar o mundo; as mulheres são socializadas para amar. Dizem-nos que a maternidade é o nosso futuro, por isso acreditamos que — por essência — somos as que sabemos amar. A forma como entendemos o amor está, consciente e inconscientemente, na ordem simbólica em que vivemos, onde confiamos mais em crenças mágicas — divinas e naturais — do que na capacidade humana de nos comunicarmos, nos relacionarmos, nos entendermos, nos respeitarmos e, em seguida, nos amarmos.

“En realidad, no nos completamos en nadie. Ni nada nos quita esta dimensión única y maravillosa de ser completas y en sí mismas.”

*trechos em negrito são marcações da tradutora

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